Mais de 90% dos feminicídios do DF acontecem em casa, diz levantamento
Jornalista: Maria Carla
Levantamento da Secretaria de Segurança Pública mostra que mais de 90% dos feminicídios praticados no Distrito Federal são praticados em ambiente familiar. A maioria dos ataques ocorre na primeira quinzena de cada mês
As vítimas de feminicídio no Distrito Federal morrem, em sua maioria, aos fins de semana e em casa, onde elas deveriam se sentir seguras. Estudo da Secretaria de Segurança Pública demonstra que 91,7% dos casos ocorrem em ambiente familiar e a forma usada pelos assassinos é quase sempre a mesma: facadas (veja Vulneráveis). Para especialistas, os golpes com arma branca evidenciam o ódio contra elas e a covardia masculina.
Os dados fazem parte da Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios. Trata-se de um levantamento que ajuda a entender o fenômeno. A partir dele, os responsáveis pelas forças de segurança traçam estratégias de combate. No relatório, consta que, dos feminicídios registrados entre 2015, quando a norma entrou em vigor (leia O que diz a lei), até 18 de março deste ano, 67,6% dos ataques ocorreram na primeira quinzena dos meses.
Para o secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, o resultado aponta que, com o salário no bolso, os acusados de feminicídio saem para aproveitar o fim de semana, voltam bêbados para casa, discutem com a mulher e as matam. “O feminicídio é um crime de fácil elucidação, mas de difícil prevenção. Quando ele acontece, geralmente, a gente sabe quem cometeu, mas precisamos incentivar as pessoas a denunciar casos de violência contra a mulher. O Estado precisa da população”, ressaltou.
Anderson refere-se ao histórico de violência sofrido pelas mulheres no período de 2015 até 18 de março. Segundo o estudo, 72% delas eram vítimas de alguma forma de ataque previsto na Lei Maria da Penha. Mais da metade — 60% — das agressões também não foram registradas, e só 20,6% estavam com medida protetiva que assegura o afastamento do companheiro.
Assassinada na segunda-feira, Jacqueline dos Santos Pereira, 39 anos, não fugiu às estatísticas. A gari foi morta a facadas, dentro de casa, em Santa Maria, pelo ex-companheiro Maciel Luiz Coutinho da Silva, 41. Nem as duas medidas protetivas que Jacqueline conseguiu na Justiça a salvou. No momento do crime, ela estava com os papéis da determinação no bolso.
Monitoramento
Para tentar garantir o cumprimento das medidas protetivas, uma das estratégias da Secretaria de Segurança Pública é fazer um monitoramento móvel. O rastreador seria colocado no agressor, e a mulher receberia um dispositivo portátil que pode ser levado na bolsa. Se o homem desrespeitar a distância mínima, é emitido um alerta para a Subsecretaria do Sistema Penitenciário (Sesipe), que fará contato com as duas partes e acionará a polícia.
O secretário Anderson Torres quer apresentar o projeto ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) amanhã ou, no máximo, na próxima semana, porque é o Judiciário quem decide pela instalação do equipamento. A expectativa é começar a utilizá-lo até o fim do mês. Até ontem, 91 homens denunciados por violência doméstica usavam tornozeleira eletrônica.
O que diz a lei
A Lei nº 13.104, conhecida como lei do feminicídio, entrou em vigor em 9 de março de 2015. A norma prevê que o assassinato de mulheres pela condição de gênero seja punido como uma qualificadora de crimes hediondos. A regra também considera como feminicídio qualquer ocorrência cuja mulher seja vítima em um contexto de violência doméstica, familiar ou de discriminação. A pena do feminicídio é aumentada de um terço até a metade.
Governo Bolsonaro aprofunda auto-exílio de cientistas e pesquisadores brasileiros
Jornalista: Maria Carla
Com medo de não conseguirem terminar o mestrado ou doutorado com o auxílio financeiro, eles buscam bolsas em instituições de outros países
Reportagem de Isabela Palhares, na edição desta terça-feira (14) do jornal O Estado de S.Paulo, revela que o cenário anunciado por Jair Bolsonaro (PSL), com cortes para a área e declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que o investimento em pesquisa e pós-graduação não será prioridade do atual governo, está provocando a migração de cientistas e pesquisadores brasileiros em busca de recursos para dar continuidade aos estudos.
Segundo a jornalista, com medo de não conseguirem terminar o mestrado ou doutorado com o auxílio financeiro, eles buscam bolsas em instituições de outros países.
“Os cientistas não saem mais do País por opção, mas por ser a única chance de continuar fazendo o seu trabalho. O Brasil não encara educação e ciência como prioridades. Isso não começou agora com o (governo Jair) Bolsonaro, já se tornou uma rotina. O que agrava a situação nesse momento é a postura e as declarações de desprezo do novo governo com a ciência”, diz Helena Nader, membro da Academia Brasileira de Ciências e do Conselho Superior da Capes.
Considerado apenas o orçamento para as bolsas de pós-graduação e formação de professores, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) perdeu 24,4% dos recursos nos últimos cinco anos – em 2014, eram R$ 4,6 bilhões, na correção pela inflação acumulada até janeiro deste ano, e passaram a R$ 3,4 bilhões neste ano, antes do contingenciamento de 23%.
No Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o orçamento para bolsas caiu 40,6% no mesmo período. Depois de anunciar um bloqueio de 30% do orçamento discricionário das universidades federais, o Ministério da Educação (MEC) cortou 3,4 mil bolsas de estudo da Capes.
Punir universidade por conhecimento que não convém ao governo é inconstitucional, diz diretor do Direito da USP
Jornalista: Maria Carla
Quando diz que vai cortar verbas de universidades que “promoverem balbúrdia” e não deixa claro ao que se refere, o governo dá a entender que o que considera “balbúrdia” é a produção de conhecimento que não lhe convém, diz o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques. E se o objetivo dos cortes é fazer controle ideológico, diz ele, a medida é “absolutamente inconstitucional”.
O anúncio do Ministério da Educação de que vai cortar dinheiro de universidades veio nesta semana – e ao menos três federais já tiveram verbas bloqueadas: a UFBA (Universidade Federal da Bahia), a UFF (Universidade Federal Fluminense) e a UnB (Universidade de Brasília). As três tiveram momentos de discussão política com críticas ao presidente Jair Bolsonaro. A UnB, por exemplo, promoveu debates com alguns de seus opositores políticos.
Segundo Marques, cobrar a universidade por uma boa gestão é um “dever dos governantes e da sociedade”, mas a atual medida do governo “parece ilustrar uma visão mais de controle ideológico do que controle de gestão“.
“Se balbúrdia é produzir conhecimento que não convém ao governo, essa medida é uma medida inconstitucional, cerceadora da autonomia, anti-isonômica e anti-institucional”, diz Marques em entrevista à BBC News Brasil em seu escritório em São Paulo.
Especialista em Direito Público, ele também critica a ideia do governo do Estado de São Paulo de fazer uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Educação para investigar universidades estaduais, como a USP e a Unicamp.
Intelectuais das principais universidades do mundo assinam manifesto contra Bolsonaro
Jornalista: Maria Carla
Protesto é contra os ataques do governo brasileiro ao setor de Educação, principalmente nas áreas de Filosofia e Sociologia
Mais de 11 mil acadêmicos de universidades de todo o mundo assinaram nesta segunda-feira (6) um manifesto contra os cortes no setor de Educação do governo de Jair Bolsonaro, principalmente em Filosofia e Sociologia.
Intelectuais de Harvard, Princeton, Yale, Oxford, Cambridge, Berkeley, e de instituições brasileiras como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de Brasília (UnB), entre outras, assinam o documento.
O manifesto foi divulgado no jornal francês Le Monde e o abaixo-assinado foi organizado pela “Gender International”, uma rede de pesquisadores de estudos de gênero e sexualidade.
O documento reforça que “as ciências sociais e as humanidades não são um luxo” e defende que “nas nossas sociedades democráticas, os políticos não devem decidir o que é a boa ou a má ciência”.
“Pensar sobre o mundo e compreender nossas sociedades não deve ser privilégio dos mais ricos. Como acadêmicos dos mais diversos campos, estamos plenamente convencidos de que nossas sociedades, incluindo o Brasil, precisam de mais, e não menos educação”, ressalta o documento, que destaca que “a avaliação do conhecimento e de sua utilidade não pode ser conduzida de modo a conformar- se com as ideologias de quem está no poder”.
Veja também:Porta-voz oficioso de Bolsonaro, Olavo de Carvalho ataca general Villas Bôas: “não para de cagar o dia inteiro”
Outro manifesto
Um outro manifesto também foi criado para combater as mesmas declarações de Bolsonaro. O documento foi idealizado por sociólogos da Universidade Harvard e já é endossado por intelectuais da área de todo o mundo. A leitura da íntegra do manifesto (em inglês) está aqui.
“Nós nos opomos à tentativa do presidente Bolsonaro de desinvestir na sociologia, ou qualquer outro programa nas Ciências Humanas ou Sociais. Como sociólogos históricos e contemporâneos, entendemos que a mercantilização do ensino superior convenceu muitos políticos — no Brasil, nos Estados Unidos e no mundo — de que uma educação universitária é valiosa apenas na medida em que é imediatamente lucrativa. Nós rejeitamos essa premissa”, diz o documento.
Vejam abaixo a íntegra do abaixo-assinado organizado PELA “Gender International”:
“No dia 29 de abril de 2019, o presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro, confirmou por Twitter o que no dia anterior já havia anunciado o Ministro da Educação, Abraham Weintraub: seu governo planeja reduzir o financiamento federal para programas acadêmicos em sociologia e filosofia. Segundo eles, nesses campos, futuros estudantes terão que pagar por sua própria formação. Enquanto o Ministro afirmava que sua proposta havia sido orientada por medidas tomadas no Japão em 2015, o Presidente insistia que a educação deve se concentrar na leitura, na redação e na aritmética e que, em lugar dos cursos na área de humanidades, o Estado deve investir nas áreas que tragam retornos imediatos para quem paga impostos, tais como veterinária, engenharia e medicina.
Nós, signatários dessa declaração, fazemos um alerta quanto às sérias consequências de tais medidas que, inclusive, levaram o governo do Japão a recuar de suas propostas depois de um amplo protesto nacional e internacional. Em primeiro lugar, por que a educação em geral e a educação superior, em particular, não trazem retornos imediatos; constituem um investimento no futuro das novas gerações. Segundo, as economias modernas não exigem apenas técnicos especializados; nossas sociedades precisam de cidadãs e cidadãos que tenham uma formação ampla e geral. Terceiro, nas nossas sociedades democráticas, os políticos não devem decidir o que é a boa ou a má ciência. A avaliação do conhecimento e de sua utilidade não pode ser conduzida de modo a conformar- se com as ideologias de quem está no poder.
As ciências sociais e as humanidades não são um luxo; pensar sobre o mundo e compreender nossas sociedades não devem ser privilégio dos mais ricos. Como acadêmicos dos mais diversos campos, estamos plenamente convencidos que nossas sociedades, incluindo o Brasil, precisam de mais e não menos educação. A inteligência coletiva é tanto um recurso econômico quanto um valor democrático”.
Janine Ribeiro: para governo, educação não é promessa, é ameaça
Jornalista: Maria Carla
“Eles querem controlar, não melhorar a educação. Querem impedir que a educação forme espírito crítico nas pessoas. Querem que a educação seja disciplinar”, diz ex-ministro da Educação
O anúncio do presidente Jair Bolsonaro (PSL), nesta sexta-feira (26), de que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, quer “descentralizar” investimentos nas faculdades de Filosofia e Sociologia, teve enorme repercussão nas redes sociais. As hashtags #Filosofia, #Humanas e #Sociologia estiveram nos trend topics do Twitter durante todo o dia. Para justificar o que, na prática, significa atacar, reduzir e até mesmo eliminar o estudo das ciências humanas no país, o chefe de Estado brasileiro alegou que “o objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.
Para o ex-ministro da Educação (2015) Renato Janine Ribeiro, há grande desconhecimento por parte do governo sobre o que é “conhecimento rigoroso”. “Não tenho dúvida de que a engenharia é muito importante para aumentar o PIB. Mas, por outro lado, se você não estudar a sociedade, o tema da sociologia, como vai lidar com a sociedade?”
Ele aponta que o estudo da sociologia dá ao aluno condições de compreender a realidade em que vive e, portanto, se relacionar com ela, o que não é pouco. “Quando o governo pensa em retirar o conhecimento sobre a sociologia, o risco que você tem com isso é, na verdade, perder a noção dos problemas acarretados pela pobreza, pela miséria etc.”
Um exemplo de compreensão até simples proporcionado pela matéria: “Não é porque você aumenta a produção agrícola que vai diminuir a miséria, e a miséria custa caro.”
Professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), ele destaca que a reflexão proporcionada pela filosofia é essencial para a formação de qualquer pessoa. “Conheço muita gente no meio empresarial que se formou em filosofia e ganhou muita experiência, graças à rapidez no raciocínio”, diz.
Para o ex-ministro, o anúncio de Bolsonaro enuncia a intenção de impedir que a educação forme espírito crítico nas pessoas. “O governo nunca fala de educação como promessa; para eles, educação é sempre ameaça.”
Como encara o fato de estar em “avaliação”, pelo governo, a possibilidade de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia”?
Há um grande desconhecimento do governo em relação ao que é conhecimento rigoroso. Eles pensam que filosofia e sociologia são conhecimentos inúteis. Não tenho dúvida de que a engenharia é muito importante para aumentar o PIB. Mas, por outro lado, se você não estudar a sociedade, o tema da sociologia, como vai lidar com a sociedade?
Para guiar um carro, você tem que saber como ele funciona. Mal comparando, acontece isso também com o ser humano. Para se relacionar com a sociedade, tem que saber como vivem as pessoas, como se estrutura essa sociedade, qual a hierarquia, como a desigualdade social opera, por que a desigualdade se tornou uma coisa mais intolerável. Na sociedade, hoje, os países mais ricos são os que têm menos pobres.
Sob qual ponto de vista se deve tratar a questão da filosofia e da sociologia?
Eu focaria nisso: como você pode entender e lidar com a sociedade se você não tem um conhecimento sobre ela? Sociologia é uma ciência, assim como química. Para entender a matéria, você precisa de química, biologia, física. Para entender a sociedade, precisa de sociologia, psicologia, antropologia. Se não faz isso, você não sabe como lidar com as pessoas, do que elas necessitam.
A sociologia, em particular, é muito focada na desigualdade social. A desigualdade é um problema tremendo hoje, mas de modo geral os países ricos são os que reduziram a desigualdade social.
Quando o governo pensa em retirar o conhecimento sobre a sociologia, o risco que você tem com isso é, na verdade, perder a noção dos problemas acarretados pela pobreza, pela miséria etc. Os problemas não vão se resolver apenas com veterinária e agronomia.
Não é porque você aumenta a produção agrícola que vai diminuir a miséria, e a miséria custa caro. As pessoas ficam mais doentes e você tem que tratar delas. Elas morrem mais cedo, não realizam suas potencialidades produtivas, perdem-se talentos que não chegam sequer a serem formados. Tudo isso no tocante à sociologia.
Que instrumentos a filosofia é capaz de proporcionar a um jovem, considerando que, para algumas pessoas, ela não “serve para nada”?
Se a pessoa é um engenheiro, deve ter estudado física e matemática. Sem matemática seria um péssimo engenheiro.
Acontece que a filosofia tem toda uma área que se chama Teoria do Conhecimento, que inclui uma reflexão sobre as ciências. Tem a epistemologia, que é a teoria das ciências. Primeiro ponto: se a pessoa estudou engenharia, deve alguma coisa à filosofia, que contribui muito para a matemática e a física.
A filosofia tem muito a ver com as ciências e as transformações todas são científicas. O segundo ponto é que a filosofia lida muito, também, com a mudança de paradigmas. O mundo muda – e muito depressa.
Como as pessoas que estudaram filosofia lidam com um raciocínio mais abstrato, elas têm mais facilidade em perceber um paradigma novo do que pessoas que foram a vida toda treinadas com uma rotina só.
Essas pessoas só conseguem entender a realidade de maneira segmentada, não como um todo…
Não é só perceber o todo, mas as mudanças no todo. No mundo, hoje, tudo está mudando o tempo todo. Por exemplo, o Uber muda totalmente a maneira de você conceber o transporte por táxi, independentemente da preferência pessoal. Mas como lidar com essa mudança de modelo?
A filosofia ajuda a entender isso, porque, como ela trata de modelos muito diferentes de pensamento – Platão pensa de forma muito diferente de Descartes, por exemplo –, ela torna a pessoa mais ágil para lidar com uma mudança de modelos.
Conheço gente no meio empresarial que se formou em filosofia e ganhou muita experiência, graças à rapidez no raciocínio. Isso é diferente de você trabalhar com rotinas de protocolos. Muitas profissões têm protocolos.
Por exemplo, você vai a um hospital ou a um laboratório colher sangue e há um protocolo elaborado para extrair o seu sangue da forma mais correta possível. Esses protocolos mudam o tempo todo. Na filosofia, justamente, não tem protocolos. Então, você consegue entender que não pode ter uma única rotina de lidar com as coisas na vida.
Como ex-ministro da Educação, que tipo de política acha que deveria ser adotada, por exemplo na área de humanas?
A política principal é a da qualidade dos cursos. Hoje, se não tem dinheiro novo, e não se pode fazer uma expansão maior do que já foi feita, tem que trabalhar a qualidade. Ver quais cursos são bons, quais são ruins, melhorar os cursos ruins ou fechá-los. Isso em qualquer área. Veterinária ou medicina, como pode ser filosofia ou sociologia. Curso ruim é um desserviço ao país.
É curioso que, desde o governo Temer, e continuando neste governo, estão abrindo um número enorme de faculdades de Direito, privadas, sendo que a reprovação em Direito no exame da OAB passa de 80%. Há um grande número de cursos que são abertos, as pessoas pagam e têm um ensino que não vai ser suficiente para exercerem a profissão.
Essas são algumas prioridades que deveriam ser consideradas, no ensino superior. Não é fazer uma oposição entre humanas e matérias que são úteis para o crescimento econômico. É pensar em qual qualidade de ensino que a gente quer.
Na infância e na juventude as pessoas têm uma educação muito precária de modo geral, e chegam à universidade com muita dificuldade de entender temas complexos. O brasileiro não está muito distante de uma educação que seja homogênea e de qualidade desde o básico até a universidade?
Muito! Agora, o problema é que, em relação à base disso tudo, os anos do ensino básico – o fundamental e o médio –, o Brasil tinha chegado a um consenso, com PT, PSDB e o próprio DEM, de que era importante agir para melhorar a educação básica. E esse consenso foi rompido pelo atual governo.
O governo nunca fala de educação como promessa, para eles educação é sempre ameaça. Eles querem controlar, não melhorar a educação. Querem impedir que a educação forme espírito crítico nas pessoas. Querem que a educação seja disciplinar. Por isso falam em escola militar, em proibir certos assuntos, por isso querem tirar do Enem o que pode ser crítico. Tudo isso é muito negativo.
Ou a escola sem partido…
Também. Mas esse é um assunto que a esquerda fortaleceu demais.
Por quê?
Porque a esquerda só fala disso. Desde a hora em que esse assunto surgiu, a esquerda não teve um assunto melhor. Tem que fazer propostas, e não ficar o tempo todo falando de uma falsidade, de um factoide. Não pode ficar o tempo todo promovendo as propostas ruins.
O grande segredo da comunicação é esse, “falem mal, mas falem de mim”. Veja o Bolsonaro. Durante anos as pessoas achavam as coisas dele meio cômicas etc., mas ele se tornou muito conhecido. De repente isso virou uma popularidade. Há assuntos que são muito fortalecidos desse jeito.
Trabalho precário, intermitente, é a antessala do desemprego
Jornalista: Maria Carla
Ricardo Antunes é um dos maiores especialistas brasileiros no tema do mundo do trabalho. Atualmente, é professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas. Em seu último livro, intitulado O Privilégio da Servidão, Antunes desenhou um quadro da situação da classe trabalhadora na história recente do Brasil, a partir do fim da ditadura militar. O estudo se concentra no que ele chama de “novo proletariado de serviços”, alavancado com o crescimento do trabalho digital, on-line e intermitente dos últimos anos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo falou sobre o futuro do trabalho, as características das relações trabalhistas no Brasil e os impactos da reforma trabalhista sobre esse cenário. “Se a classe trabalhadora, os movimentos sindicais, sociais e os partidos de esquerda não desenharem um outro modo de vida, daqui a dez anos eu vou dizer ‘está muito pior’. Com o mundo da internet, todos podem ter um tipo de trabalho onde não tem mais limite de jornada, não tem mais dia e noite”, avalia o sociólogo.
Antunes também deu pistas sobre as formas de resistência que os trabalhadores podem impor à retirada de direitos e à crescente proletarização marcada pela superexploração, que tem atingido não só os trabalhadores do fast-food, motoboys, trabalhadores de hotéis, trabalhadores dos hipermercados, mas também a categorias com maior renda média, como médicos e advogados.
Por fim, o professor enfatizou que a recuperação de uma política de conciliação de classes não é mais um caminho viável. “Na nossa ação, todo o oxigênio não pode estar voltado para a institucionalidade. Qual é a prioridade? Garantir representação parlamentar ou organizar a massa da classe trabalhadora?”, provocou.
Leia a entrevista completa abaixo:
Brasil de Fato: Se você pudesse resumir, qual diria que é o perfil do trabalhador brasileiro hoje?
Ricardo Antunes: Aqui a classe trabalhadora, além de trabalhar longas jornadas de trabalho, é paga abaixo dos níveis necessários para sobrevivência. Isso é o que a caracteriza.
O que nós estamos vendo, nos últimos quarenta ou cinquenta anos, é uma explosão do setor de serviços. E uma explosão que se deve à privatização desse setor, ao fato dele gerar lucro, ao fato dele passarem a ser explorado pelas grandes corporações capitalistas, ao fato de que esse período marcou uma explosão do mundo informacional digital.
O resultado é um novo proletariado de serviços da era digital.
Esse proletariado é mais explorado do que aquele antigo trabalhador?
Não. O que acontece é que no setor de serviços há uma enorme proletarização, que atingiu não só os trabalhadores do fast-food, motoboys, trabalhadores de hotéis, trabalhadores dos hipermercados, mas também médicos, advogados…
Hoje, um jovem médico que é de família pobre vai ter que trabalhar em três ou quatro empresas de saúde para poder ganhar um salário que não é alto. Há jovens advogados perambulando como intermitentes nos escritórios para tentar uma causa. Agora imagine as profissões dos cuidados, as trabalhadoras domésticas, eletricistas, trabalhadores do Uber, entregadores do iFood. Toda essa massa de proletários que se esparrama a partir do mundo digital.
Essas novas formas de trabalho vão tomar conta do mercado de trabalho?
Vão. Se a classe trabalhadora, os movimentos sindicais, sociais e os partidos de esquerda não desenharem um outro modo de vida, daqui a dez anos eu vou dizer “está muito pior”. Com o mundo da internet, todos podem ter um tipo de trabalho onde não tem mais limite de jornada, não tem mais dia e noite.
A reforma trabalhista veio para formalizar algumas das formas de trabalho mencionadas pelo senhor, como a terceirização e o trabalho intermitente. É possível dizer que ela veio para modernizar as relações de trabalho?
Dá para dizer que ela escravizou. Na escravidão, o senhor de escravo comprava o escravo, na terceirização ele aluga. A contra Reforma Trabalhista do Temer [veio] para quebrar a espinha dorsal da CLT.
A prevalência do negociado sobre o legislado. A ideia de flexibilidade da jornada e do salário. A piora das condições de salubridade. Até coisas perversas, como as trabalhadoras e os trabalhadores tem que comprar seus uniformes. O transporte antes era uma obrigação das empresas, não é mais. A restrição da Justiça do Trabalho.
Como a Reforma refletiu no Judiciário?
Brutalmente. Primeiro, a queda de reivindicações judiciais. A ideia é acabar com a Justiça do Trabalho.
Esse foi o papel do Temer, devastar. E é preciso reconhecer que ele foi muito competente.
Comente um pouco o desemprego e a explosão da informalidade no nosso país.
Nós falamos até agora do trabalho precário, que tende a ser a regra, e a exceção é a plenitude dos direitos. O trabalho precário, informal, intermitente é a antessala do desemprego.
O desemprego no Brasil hoje é de 13 milhões de pessoas. Mas o desemprego por desalento são mais 5 milhões. Sem falar nas múltiplas modalidades que oscilam entre a informalidade real e a informalidade legal. O resultado é que nós temos uma massa sobrante de trabalhadores e trabalhadoras impressionante.
É por isso que o nível de desemprego por desalento é alto. O desalento não é o trabalhador ou a trabalhadora que não querem mais buscar emprego porque não precisam. Eles não buscam mais emprego porque estão fazendo isso há um, dois anos. Para buscar emprego você tem que acordar cedo, ter dinheiro para condução, para alimentação. É muito custoso.
O trabalho informal foi estimulado durante um período, com a inclusão do Simples, do Micro Empreendedor Individual (MEI), por exemplo. Por que isso acontecia?
O sistema sabe que vai criar bolsões de desempregados, e não tem mais a sopa das seis para eles. As políticas sociais estão cada vez mais em retração. É aí que surge uma palavra tão mágica quanto mistificadora: empreendedorismo. Você querendo você consegue.
Você vai pegar o que te restou de dinheiro. Ah, mas não tenho nada. Você tem uma casa, tem um carro? Vende e vai empreender. Vai fazer o que você sabe, começar a vender doce de leite, cachorro quente, pipoca.
É incentivar no trabalhador que não tem nada a ideia de ser patrão de si próprio e ganhar um dinheiro que o tira da condição de assalariado, que ele sabe que é ruim.
O avanço da automação trazia a promessa de que os trabalhadores se veriam livres do fardo do trabalho e teriam cada vez mais tempo livre. Mas, o que vemos é o oposto: trabalhamos cada vez mais e temos cada vez menos tempo livre. O que aconteceu no meio do caminho?
A impostura capitalista. É uma promessa que esconde a realidade. A automação é para aumentar a produtividade do capital [e] para reduzir a força de trabalho, que é tratada como custo.
O capital é muito econômico nos seus custos. Ele sabe que o seu lucro aumenta, a sua produtividade é maior, quanto mais ele economiza e impede o desperdício. E ao economizar e impedir o desperdício, ele tem uma tendência intrínseca de reduzir trabalho humano e ampliar trabalho morto, o maquinário.
O que você vê de novo que possa servir como exemplo na superação destas dificuldades?
Nós temos três ferramentas: sindicatos, partidos e movimentos sociais. Algumas delas estão bem enferrujadas, mas eu não jogo nenhuma ferramenta fora se não tenho uma melhor.
Tem aqueles colegas que às vezes dão saltos no escuro: “ah, não dá para esperar mais nada da classe trabalhadora”. Tá bom, eu vou esperar então dos intelectuais a revolução? “Ah, partidos estão fora”. Tá bom o que eu boto no lugar dos partidos hoje? E os sindicatos? Estão em uma crise danada, mas não é possível resgatar um sindicalismo de classe?
Cada um desses três instrumentos precisa aprender um com o outro e se somar na sua força e na sua debilidade. O movimento social é decisivo e tem seus limites, os partidos são decisivos e têm seus limites e os sindicatos são decisivos e têm seus limites.
Segundo, retomar uma luta de base. Não adianta uma vanguarda achar que está certa e ir caminhando, porque às vezes ela se arrebenta, e quando está no sufoco ela chama a base…
Terceiro, olhar o que é novo nas lutas sociais, as novas formas de luta. Em parte da classe trabalhadora européia mais precarizada, que não tem mais nenhum direito, eles estão se autodefinindo como precariado e criando associações do precariado, que são como movimentos sociais do precariado.
Por fim, na nossa ação todo o oxigênio não pode estar voltado para a institucionalidade. Qual é a prioridade? Garantir representação parlamentar ou organizar a massa da classe trabalhadora?
Nós estamos em uma era das contrarrevoluções. Não será recuperando uma política de conciliação de classes que nós vamos sair desse ataque. O empresariado não quer mais conciliação, quer devastação. Eles querem nos devastar, nós temos que saber como devastá-los.
A produção declina, o desemprego volta a crescer, os investimentos não voltarão tão cedo. Mas eles insistem na miragem “Reforma da Previdência” – como se quisessem voltar a Pinochet, aos banhos de sangue, ao fascismo de mercado
“Quem diria que no começo do mandato de um governo liberal ele iria sancionar subsídios e discutir a retomada de proteções setoriais. Não é só a tarifa do leite, é a proteção de bens de capital”.
Marcos Lisboa, O Globo, 18/02/2019
Súbito, fez-se o consenso, e já não é mais possível tapar o sol com a peneira: no primeiro trimestre de 2019, a economia brasileira entrou em marcha forçada na direção do colapso. Em apenas três meses, o mercado reduziu quatro vezes seguidas seu prognóstico com relação ao crescimento do PIB de 2019, que caiu de 3% para 1.8%. E tudo indica que seguirá caindo, tanto que o próprio mercado reconhece que não haverá retomada dos investimentos neste ano, qualquer que seja a circunstância. Pelo Índice de Atividade Econômica do Banco Central (o IBC-BR), a economia brasileira recuou 0,41% no mês de janeiro, enquanto a produção industrial despencava 0,8% no mesmo mês, segundo o IBGE. No acumulado do trimestre, o preço da gasolina subiu 28,3% e, no mês de março, a produção de veículos caiu 6,4% com relação a fevereiro, enquanto a capacidade ociosa da indústria química chegou a 25%, e a da economia brasileira ronda os 40%. A taxa de desemprego subiu de 11,6% para 12,4%, e o número de desempregados chegou aos 13 milhões, com aumento de um milhão em apenas três meses, numa economia que já tem 27,9 milhões de subempregados, em uma sociedade que voltou a ter 21% da sua população abaixo da linha da pobreza. Por fim, as receitas federais e o otimismo dos empresários e da população vêm caindo de forma acelerada e contínua.
Tudo isto poderia ser apenas um soluço econômico, mas não é. Na década de 2011 a 2020, a taxa média esperada do crescimento anual da economia brasileira deverá ser de apenas 0,9%, segundo estudo publicado pelo IBRE, da Fundação Getúlio Vargas. Uma taxa média menor que a da década de 80, que foi de 1,6%, e por isso chamada de “década perdida”. Segundo esse mesmo estudo do IBRE/FGV, o crescimento médio desta década deverá ser o pior dos últimos 120 anos da história brasileira, implicando um empobrecimento anual dos brasileiros na ordem de 0,3% do PIB ao ano. E não há no momento a menor perspectiva de reversão deste quadro, com a taxa de investimento da economia brasileira girando em torno dos 15,5%, taxa muito inferior à do Chile ou do México, que está na casa dos 20%, e muitíssimo inferior à taxa de investimento de alguns sócios brasileiros do BRICS, como é o caso da China, que investiu 44,18% do PIB em 2018, ou mesmo da Índia, que investiu 31,4% no mesmo período, segundo dados do FMI.
Uma situação que fica ainda mais difícil para o Brasil, num momento em que o mercado mundial de bônus vem caindo, sobretudo no caso dos bônus do governo alemão e dos títulos do tesouro norte-americano, tornando os investidores internacionais cada vez mais reticentes, apesar do afrouxamento da política monetária do BCE e do FED. O economista Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano, considera que a economia mundial está entrando num longo ciclo de “estagnação global”, enquanto outros economistas falam do descenso de mais um ciclo de Kondratiev, mas a consequência é a mesma: para sair do buraco nessa conjuntura internacional, o Brasil terá que contar com seus próprios recursos e estímulos, para poder crescer de maneira contínua, a taxas de 3 e 4%, em um período de pelo menos 5 a 10 anos. É a única forma de absorver a capacidade ociosa e eliminar o desemprego, retomando o caminho do crescimento indispensável para que uma economia “atrasada” ou “imatura” consiga vencer sua miséria, reduzir sua desigualdade social e participar, em igualdade de condições, da competição entre as nações pela riqueza mundial.
Para enfrentar esse desafio, os economistas liberais têm uma proposta simples e recorrente: reformar a Previdência, privatizar empresas estatais e fazer reformas institucionais que abram e desregulem os mercados. Com relação à proposta de privatização da Previdência, balanço recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) constata que dos 30 países que fizeram a mesma reforma, entre 1981 e 2014, 18 já voltaram atrás em decorrência do fracasso de seus novos sistemas de capitalização, iguais ao que está sendo proposto no Brasil. E a própria reforma chilena, que foi concebida pelo economista José Piñera, do grupo dos Chicago Boys, e depois imposta por decreto ditatorial do General Pinochet em 1981 (ou seja, oito anos depois do golpe militar de 1973), hoje vem sendo questionada de forma cada dia mais agressiva, por uma verdadeira massa de idosos, pobres ou miseráveis, frustrados com os resultados desastrosos do novo sistema.
De qualquer maneira, independentemente do seu custo social e do seu verdadeiro impacto fiscal, o que importa destacar é que a privatização da Previdência não tem, nem nunca teve, nenhuma conexão direta com a taxa de investimento da economia, e portanto também não tem nenhuma capacidade de induzir crescimento econômico. E tudo o que os economistas liberais dizem sobre este assunto envolve uma especulação mágica e psicológica sobre as “expectativas dos investidores”, que não tem nenhuma base teórica nem evidência empírica, inclusive porque os “investidores” já podem ter perdido sua “confiança” e seu “interesse” na “sobre-oferta” mundial de reformas da Previdência. Por outro lado, a privatização das demais empresas estatais só gera recursos do tipo once for all, e não garante nenhum tipo de investimento posterior dentro da economia brasileira.
O mesmo pode ser dito com relação às demais “reformas” de que falam os economistas liberais, visando desregular e abrir os mercados. Qualquer economista, de qualquer tendência teórica, sabe que nenhuma dessas reformas irá reacender, por si mesma, o “animal spirit” dos investidores, capaz de recolocar a economia brasileira na trilha do crescimento. Deste ponto de vista, é bom olhar para a experiência recente da Argentina de Mauricio Macri, que depois de três anos adotando políticas ortodoxas e reformas liberais – incluindo a reforma da Previdência – teve um crescimento negativo do PIB de 2,5% em 2018, e tem uma previsão de queda de 3,1% para 2019. Um resultado desastroso, que se soma a uma taxa de inflação que está na casa dos 47%, com um desemprego de 9,1 % e com 32% da população argentina situada abaixo da linha de pobreza.
Nada disso, entretanto, parece atingir ou afetar a inabalável crença dos economistas liberais, no cálculo utilitário do homo economicus, na existência de mercados abertos e desregulados, e na possibilidade de separar a economia capitalista do poder do Estado. É quase impossível para um economista liberal entender e aceitar que a economia envolve relações sociais de poder, e é parte de uma luta pela riqueza entre as grandes corporações e os grandes Estados nacionais. Os economistas liberais raciocinam como se estivessem no ponto zero da história, dentro de uma economia homogênea e com atores equipotentes quando, de fato, vivem numa sociedade que já é, de partida, desigual e heterogênea, envolvendo interesses econômicos e sociais excludentes e conflitivos. E tudo isto dentro de um sistema internacional em que os grandes Estados se valem de suas economias nacionais como instrumentos na sua luta pelo poder e a riqueza internacionais.
Dentro deste pensamento abstrato e irreal dos economistas liberais, é um grande passo teórico e um avanço realista a redescoberta da teoria estatal da moeda, de Georg Knapp, com o reconhecimento da relação indissolúvel entre o poder e a moeda – mesmo quando seja necessário acrescentar ao raciocínio de Knapp que a autonomia econômica dos Estados com relação ao manejo de suas próprias moedas também depende da sua posição dentro da hierarquia mundial do poder político e militar. Mas este já seria outro assunto e outra discussão.
Por isso voltemos ao ponto central do nosso argumento quanto à impotência da resposta dos economistas liberais frente ao desafio que o Brasil está enfrentando neste final da segunda década do século XXI. Do nosso ponto de vista, como já dissemos, os economistas liberais partem de premissas teóricas que desconhecem a complexidade do mundo real, nacional e internacional, e defendem um pacote de “reformas” que não leva em conta a heterogeneidade dos interesses e as hierarquias de poder que separam e contrapõem os capitais individuais e as classes sociais e, finalmente, propõem políticas e medidas que não foram concebidas para promover o crescimento acelerado de países “atrasados” ou “imaturos”. Isso talvez ajude a entender por que os empresários e economistas liberais sejam sempre os primeiros a ser chamados, mas sejam também os primeiros a ser dispensados pelos governos brasileiros que nasceram dos golpes militares – de 24 de outubro 1930, de 19 de novembro de 1937, de 29 de outubro de 1945, de 24 de agosto de 1954 e de 31 março de 1964.
No sentido inverso, talvez também sejam essas mesmas recorrências históricas do passado que expliquem a paradoxal admiração contemporânea de alguns economistas liberais brasileiros pelo Sr. Augusto Pinochet, a figura por excelência de governante violento, ignorante e corrupto, que se dedicou durante 15 anos à eliminação física de seus adversários e de toda a atividade política dissidente do seu país. Um verdadeiro “banho de sangue” que permitiu, em última instância, que os Chicago Boys chilenos pudessem impor ditatorialmente suas políticas e reformas, por cima de 3 mil pessoas mortas e mais 20 mil chilenos torturados, em nome do regime que outro economista norte-americano, Paul Samuelson, chamou de “fascismo de mercado”.
Artigo de José Luís Fiori | Imagem: Salvador Dalí,O sono (1937) | Fonte: Outras Palavras
ARTIGO | Escolas militares. Brasília deve desculpas a Anísio Teixeira
Jornalista: Maria Carla
Muito se tem falado de Paulo Freire, o educador brasileiro que a era das trevas tenta desconstruir. Há um outro, tão importante quanto ele e mais importante ainda para Brasília. É o baiano Anísio Teixeira, considerado pela história como o estadista da educação no Brasil, pelos cargos que ocupou e pelo muito que refletiu e agiu para que as escolas públicas brasileiras formassem cidadãos inteiros, com espírito crítico, senso de atualidade, autonomia, responsabilidade, alegria e gosto pelas artes e pelo esporte.
Ao contrário da falácia policialesca que chegou às escolas públicas de Brasília, Anísio dizia, em meados do século 20, quando o Brasil tentava sair do atraso secular para fazer parte, em igualdade de condições, do mundo tecnológico, industrial, urbano e moderno que surgia: “Estamos passando de uma civilização baseada em uma autoridade externa para uma baseada na autoridade interna de cada um de nós”.
Na escola democrática preconizada por Anísio Teixeira, o aluno aprenderia a pensar, julgar e decidir por si mesmo, em liberdade e em ambiente de confiança mútua com os professores.
Para dar conta de formar esse cidadão autônomo, a escola pública teria de ser de tempo integral, de manhã e à tarde, com atividades no contraturno. Num período, aulas convencionais; no outro, aulas para expandir o espírito, fortalecer o corpo e consolidar o afeto.
Quando Brasília começou a ser construída, em fins dos anos 1950, Anísio dirigia o Inep (que hoje é responsável pelas provas do Enem). Se era uma cidade para um novo modo urbano de viver, então também teria que ser uma cidade com uma nova escola, uma escola pública, laica e gratuita. Anísio a chamava de “escola progressiva”, que vai num crescendo, do ensino fundamental (antes, escola primária) à universidade.
Anísio vinha de experiências educacionais no Rio de Janeiro e em Salvador. Havia sido perseguido pelo Estado Novo, que o levou a um exílio na cidade natal, Caitité, por 10 anos. Com a redemocratização do país, Anísio Teixeira voltou às atividades nas quais era mestre, ativista e pensador.
O projeto de Lucio Costa para a nova capital do Brasil e as ideias de Anísio Teixeira para a educação dos brasileiros casaram-se perfeitamente. Lucio havia projetado escolas em todas as superquadras; Anísio já havia ensaiado uma escola-parque em Salvador. Brasília era o território perfeito para experimentar, em larga escala, a escola integral com horário letivo de oito horas por dia, metade em sala de aula, metade em atividades lúdicas, culturais e artísticas.
Brasília juntou, então, Anísio e Darcy Ribeiro. Os dois articularam a criação da Universidade de Brasília (UnB) e evitaram que ela fosse uma escola católica – queriam-na laica, livre das amarras religiosas.
Anísio queria educação para o Estado democrático moderno. O modelo de escola-classe e escola-parque deveria ser aplicado em todo o Brasil, mas veio o golpe de 1964 e Anísio, reitor da UnB, perdeu o cargo e, novamente, como aconteceu no Estado Novo, passou a ser perseguido pela polícia política.
Na manhã de 11 de março de 1971, saiu de uma reunião para almoçar na casa de Aurélio Buarque de Holanda, na Praia de Botafogo, no Rio. Não chegou à casa do filólogo. Seu corpo foi encontrado três dias depois no poço do elevador do prédio onde o dicionarista morava. As circunstâncias da morte nunca foram devidamente esclarecidas.
A militarização de escolas públicas em Brasília é mais uma morte de Anísio Teixeira e de todos nós, os que acreditamos na liberdade e na autonomia como condições essenciais para a cidadania plena.
Foto do educador Anísio Teixeiras do Arquivo Público
Artigo de Conceição Freitas Fonte: Metrópoles
O FIM DO ILUMINISMO | Lula está preso, Voltaire está morto. Babacas!
Jornalista: Maria Carla
O caso Calas é uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda do processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), podemos dizer ser inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente
O magistrado David Beaudrigue estava convicto: o jovem Marc-Antoine Calas fora assassinado pela própria família. O pai, a mãe e um dos irmãos, e também a empregada Jeanne Viguière e um jovem amigo da família, Gaubert Lavaysse: todos que estavam na casa naquela noite do dia 13 de outubro de 1761 diziam que ao descer da sala de jantar, que ficava no primeiro andar, para o térreo, encontraram o corpo de Marc-Antoine no chão. Falou-se de um desconhecido misterioso que fugira, sem ser identificado. Falou-se de uma punhalada. Mas o médico retirou a gravata de Marc-Antoine e ali estava a marca no pescoço: o rapaz fora enforcado ou estrangulado.
Na cidade de Toulouse, no sudoeste da França, Beaudrigue era mais que um magistrado comum: era um capitoul, ao mesmo tempo investigador, promotor e juiz. Usando sua autoridade, naquela mesma noite mandou para a prisão todos que estavam na casa, inclusive o cadáver.
No dia 15, a verdade veio à tona: Marc-Antoine se suicidara. Seu irmão, Pierre Calas, e Gaubert Lavaysse o encontraram enforcado. Desesperados, chamaram o pai, Jean Calas. Os três desceram o corpo para o chão. A mãe, Anne-Rose, ficou assustada com os gritos e pediu a Jeanne que fosse ver o que acontecera. Só depois Anne-Rose foi até lá. Em meio ao desespero, Jean Calas ordenou a todos que não contassem a ninguém que Marc-Antoine se suicidara. Temia o castigo que era tradicionalmente imposto aos suicidas: seu corpo era amarrado nu a uma grade (a claie d’infamie), arrastado pelas ruas da cidade, apedrejado, até ser jogado no depósito de lixo da cidade.
Mas, apesar dessa confissão, o capitoul Beaudrigue continuava convicto: a família, com a ajuda de Jeanne e de Lavaysse, assassinara Marc-Antoine. Ordenou que todos continuassem presos. Outro capitoul, Lisle Bribes, aconselhou ao colega um pouco de calma e questionou a regularidade daquela detenção. Impaciente, Beaudrigue respondeu:
– Isso é comigo, o que está em causa é a religião (“Je prends tout sur moi. C’est ici la cause de la religion”).
Beaudrigue era católico. A família Calas era protestante.
O capitoul aparentemente acreditava nos boatos que começaram a correr pela cidade segundo os quais Marc-Antoine fora assassinado pela família porque desejava se converter ao catolicismo.
O quanto havia de fanatismo religioso em Beaudrigue é difícil de determinar. Durante alguns séculos, ele foi visto por historiadores como um magistrado rígido, cruel e intolerante. Voltaire o considerava tudo isso e também um patife, mas não tinha provas para esta última acusação. Em 1927, Anatole Feugère, professor da Faculdade de Letras de Toulouse, pesquisando nos arquivos da Corte de Justiça da cidade, descobriu documentos de um antigo processo que revelaram o quanto a intuição do filósofo estava correta: os velhos papéis demonstraram que Beaudrigue pouca coisa fazia que não motivada por subornos ou interesses pessoais. Recebia dinheiro de donos de salões de jogos e prostíbulos para fazer vista grossa. Tomava para si cargas de vinho apreendidas de contrabandistas e, santarrão, até promovia orgias em sua casa de campo. Em uma ocasião, usou sua autoridade para punir duramente o ex-amante de sua amante.
Mas, mesmo sem as descobertas do professor Feugère, seria fácil suspeitar das motivações de Beaudrigue para ser tão cruel com os Calas. O poderoso cargo de capitoul era uma conquista que se fazia no campo das relações políticas. O mais poderoso ministro da França naquele momento era o conde de Saint-Florentin, hostil aos protestantes. Beaudrigue trocava correspondência com Saint-Florentin. Além disso, a elite de Toulouse era totalmente católica e o poder judiciário em boa parte dominado pelos Penitentes Brancos (uma irmandade católica). Matadores de protestantes costumavam ser celebrados como heróis. Ser intolerante com hereges era ótimo para a carreira de um capitoul.
Em Toulouse, que fora uma das capitais da heresia cátara no século XII e depois um centro importante do protestantismo na França, o catolicismo teve que se impor a ferro e fogo. Contra os cátaros foram necessárias três cruzadas. Foi em Toulouse que são Domingos criou a Inquisição. E em 1562 aconteceu um grande massacre de protestantes, no qual foram mortas entre 3.000 a 5.000 mil pessoas. Na época, todos os protestantes sobreviventes foram expulsos da cidade. O aniversário do massacre, comemorado no dia 17 de maio, foi uma das principais festividades da cidade até o século XIX. Nesse dia, como retribuição à luta da cidade contra o protestantismo, o papa concedia indulgências a quem fosse rezar na catedral ou na igreja de Saint-Sernin, na qual se encontra uma peça de madeira entalhada que mostra um porco no púlpito com a legenda: “Calvino, o porco, pregando” (“Calvin le porc, prêchant”).
A Inquisição de Goya
Em 1761, a população de Toulouse era formada por 50 mil católicos e 200 protestantes. Que conviviam mais ou menos pacificamente. O comerciante Jean Calas tinha negócios com católicos, os Calas tinham amigos católicos e a própria Jeanne, empregada da família há mais de 20 anos, era uma católica fervorosa. Mas haviam aqueles católicos mais que fervorosos, febris. Corria pela região a história de que os protestantes haviam se reunido em um sínodo, na cidade de Nimes, no qual decidiu-se que os pais e mães eram obrigados a matar seus filhos se esses tentassem mudar de religião. E os boatos diziam que Lavaysse fora enviado à casa dos Calas para ajuda-los a executar o filho.
Por mais absurdo que isso pareça, foi justamente essa história delirante de uma conspiração protestante para matar Marc-Antoine a base da argumentação da acusação:
“Calvino diz que todos os filhos que violem a autoridade paterna, quer através do desprezo, quer da rebelião, são monstros e não homens. E que, portanto, Nosso Senhor ordena que sejam condenados à morte todos os que desobedeçam a pai e mãe. Calvino é de opinião que o filho rebelde e desobediente seja morto”. Calvino, segundo a acusação contra os Calas, teria se baseado em Deuterônimo 21:18: “Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e não os ouve mesmo quando o corrigem, então, seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade e à porta do seu lugar, e dirão aos anciãos da cidade: ‘este nosso filho é rebelde e indócil, não dá ouvidos à nossa voz, é um devasso e beberrão’. Então, todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra”.
Os outros protestantes, de Toulouse e da região, ficaram escandalizados com tal acusação. Denunciaram que o suposto sínodo em Nimes nunca acontecera e que o documento em que Calvino exortara o assassinato de filhos rebeldes era falso. Mas Beaudrigue não lhes deu atenção. Ele tinha outra preocupação: se não havia qualquer prova de que os Calais haviam matado o filho era preciso ao menos provar que havia um motivo para que eles o tivessem feito, provar que Marc-Antoine de fato pretendia se converter ao catolicismo. E o capitoul não tinha nem essas provas. Tinha boatos e tinha sua convicção.
Beaudrigue decidiu então lançar uma “monitória”, uma espécie de chamamento para que pessoas que soubessem de algo sobre o caso aparecessem para depor. Pela monitória, se alguém soubesse algo e não se manifestasse estaria automaticamente excomungado. Em geral, as monitórias funcionavam: com medo de serem condenadas ao inferno, as pessoas que tinham alguma informação corriam para depor. Também em geral, as monitórias não costumavam especificar se queriam depoimentos a favor ou contra os réus. Não era o caso dessa emitida por Beaudrigue, claramente direcionada: queria ouvir quem soubesse algo da conversão de Marc-Antoine, das ameaças que os pais faziam a ele, de uma reunião em que se deliberou sua morte, daquela noite do dia 13 na qual “esta execrável deliberação foi executada, fazendo ajoelhar Marc-Antoine, o qual, pela surpresa ou pela força foi estrangulado ou enforcado” e, por fim, “todos os que saibam quem são os autores, cúmplices, implicados, aderentes deste crime, que é dos mais detestáveis”.
E aí apareceu de tudo, gente que viu Marc-Antoine em igrejas, rezando, e até uma moça que se dizia ex-protestante e que garantiu que o rapaz não só se convertera ao catolicismo, mas também a convertera (depois ficou claro que a história era fantasia da garota, que sempre havia sido católica).
Um exemplo de depoimento:
“Massaleng, viúva, declarou que sua filha lhe contou que o senhor Pagès havia contado à ela que M. Soulié havia contado a ele que a senhorita Guichardet contara a ele que a senhorita Journu havia dito algo a ela que a fez concluir que o padre Lerraut, um jesuíta, tinha sido o confessor de Marc-Antoine Calas”. O padre Lerraut foi convocado para depor e demonstrou que a história não era verdadeira.
Portanto, não havia provas e os testemunhos eram bem frágeis. Mas Beaudrigue tinha convicção e isso ele podia provar: ordenou que Marc-Antoine tivesse um pomposo enterro como mártir católico. Juntou-se uma multidão, vieram delegações de todas as ordens religiosas e todas as confrarias de penitentes. Ou seja, a hipótese de que Marc-Antoine tivesse se suicidado havia sido completamente descartada.
Condenados à morte na primeira instância, os Calas recorreram à segunda instância, que era a Corte de Justiça de Toulouse. Mas ali também não havia esperança: até porque diversos dos juízes eram da irmandade dos Penitentes Brancos. Um dos juízes chegou a dizer às duas filhas de Calais (que não estavam na casa no dia 13 de outubro, portanto não foram implicadas no caso): “Não tendes outro pai agora, senão Deus”.
Ainda assim, os juízes vacilavam: também tinham a convicção da culpa, mas viam que ela não estava demonstrada. Não havia provas. Então alguém teve a ideia de julgar e condenar Jean Calas separadamente. Acreditavam que ele, um pacato comerciante de 64 anos, não aguentaria as torturas que precediam a execução, muito menos encarar o cadafalso: iria confessar e entregar seus cúmplices.
Às quatro horas da manhã do dia 10 de março de 1762, depois de passar a noite na infernet (masmorra reservada aos condenados à morte) foi levado à câmara de torturas. Dois padres ainda tentaram convencê-lo a converter-se ao catolicismo, para assim salvar sua alma já que a vida estava perdida. Mas ele se recusou.
Beaudrigue o esperava na câmara e anunciou que aquele seria o último interrogatório. Calas foi torturado por horas, mas resistiu a todas as tentativas do capitoul de arrancar dele uma confissão. Por fim, foi levado para a praça de Saint-Georges, que já estava lotada pela multidão. O cadafalso estava montado. Jean Calas foi condenado a ser morto na roda, uma das mais cruéis formas de execução: a vítima é colocada sobre uma roda, seus ossos são quebrados e ela fica ali, às vezes sendo comida viva pelos corvos e aves de rapina, até que morra de dor ou que a autoridade tenha a misericórdia de dar o golpe final. Beaudrigue fez mais uma tentativa, pareceu vacilar em sua convicção e admitir que talvez outra pessoa tivesse assassinado Marc-Antoine:
– Calas, embora inocente, sabe talvez quais foram os autores do crime cometido contra a pessoa de Marc-Antoine?
– Não sei.
Calas ficou duas horas na agonizando naquela roda, até que o carrasco o estrangulou. Seu corpo então foi lançado a uma fogueira.
Conta-se que enquanto ele agonizava um padre chamado Bourges fez uma última tentativa de arrancar sua confissão. E o Calas respondeu irritado:
– Padre?! O quê?! Também acredita que se possa matar um filho?!
Talvez um tanto desnorteados com a inesperada firmeza de Jean Calas, os juízes liberaram os outros acusados dias depois. Pierre foi condenado a um simulacro de exílio perpétuo: foi levado para fora de um dos portões da cidade e então conduzido novamente para dentro da cidade, para o convento dos dominicanos onde ficou sob vigilância até o dia 4 de julho, quando fugiu.
Voltaire vivia do outro lado da França, em Ferney, na fronteira com a Suíça. Quando ouviu a história do protestante que matou o filho, chegou a fazer piada a respeito. O filósofo aceitava como fato que Jean Calas era um fanático que matou o filho porque este queria se tornar católico. Voltaire tinha tanto desprezo pela intolerância católica quanto pela protestante.
Mas um comerciante de Marseille, que vinha de Toulouse e estava de passagem por Ferney, contou a Voltaire a outra versão da história. O filósofo ainda assim, resistiu a acreditar que os juízes pudessem ter errado. Escreveu a um amigo que o crime de Calas lhe parecia pouco verossímil, “mas é menos verossímil ainda que os juízes, sem qualquer interesse, tenham feito perecer um inocente no suplício da roda”.
Voltaire começou uma espécie de investigação para chegar à verdade. Mandou cartas para amigos que podiam saber mais do caso. “Quero saber de que lado nesse caso está o horror do fanatismo”, diz em uma das cartas. Por fim, se convenceu da inocência de Calas. E iniciou a épica campanha para que a verdade viesse a público. Seu célebre Tratado sobre a Tolerância (Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas – 1763) é parte dessa campanha que alcançou a vitória no dia 9 de março de 1765, quando o Conselho Real, em Paris, reabilitou Jean Calas e sua família, que foi indenizada pelo rei. Exatamente três anos depois da sentença que condenou Calas à morte.
O ministro Saint-Florentin tratou de se desvincular discretamente do caso. Usou outra falha de Beaudrigue, em outro caso, como desculpa para destituí-lo. Beaudrigue enlouqueceu. Tentou suicídio duas vezes. Na segunda tentativa foi bem-sucedido.
Voltaire tinha 70 anos quando ouviu falar de Calas pela primeira vez. Já havia feito sua fama como filósofo. Mas o caso daquele comerciante de Toulouse revolucionou sua biografia: ele se tornou um herói, um campeão na defesa dos injustiçados. E se tantos bustos dele enfeitam bibliotecas até hoje é menos por causa de Cândido que por Calas. Nove de março de 1765 passou a ser o jour de gloire do iluminismo francês.
Para diversos historiadores, o caso Calas marca o início da campanha contra a pena de morte e contra a tortura. O caso virou o grande monumento ao princípio jurídico da Presunção da Inocência. Tal princípio já estava presente no Corpo do Direito Civil, de Justiniano: “Ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat” (“Àquele que disse e não ao que nega incumbe à prova”), mas foi mais ou menos esquecido durante a Idade Média, que talvez tenha começado a acabar quando o cardeal e jurista francês Jean Lemoine escreveu “item quilbet presumitur innocens nisi probetur nocens” (“uma pessoa é considerada inocente até ser provada culpada”).
É também em 1765, ano da reabilitação de Calas, que William Blackstone publica Commentaries on the Laws of England com seu famoso ratio: “é melhor que dez culpados escapem à condenação que um inocente sofra”. Podemos pensar que isso foi coincidência, resultado da Inglaterra estar mais adiantada em seu caminho rumo à democracia. Mas é certo que é Calas quem está na memória dos autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) quando eles escrevem o artigo 9: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
É claro que os Judiciários do mundo inteiro seguiram cometendo as injustiças que lhes são próprias. Mas a passou a existir aquela monumental referência do que é certo.
O caso Calas é, portanto, uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Assim, quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda desse processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), poderia se dizer que era quase inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente. Como se o caso precisasse ser refeito para que todas as consequências que teve possam ser revertidas. Então a tragédia de Toulouse volta a acontecer em Curitiba, na forma de farsa.
Como em Toulouse, o capitoul Sergio Moro não tem provas que sustentem a condenação de Lula. Moro, como Beaudrigue no passado, sequer consegue provar que há um crime. Existem os depoimentos, alguns delirantes, alguns maliciosos e interessados, alguns depoimentos, em Toulouse, arrancados à custa de ameaças de excomunhão, vários em Curitiba arrancados às custas de torturas (e não é tortura manter um cidadão preso por meses até que ele confesse a suposta culpa de outro cidadão?).
Mas há a diferença fundamental para o primeiro caso Calas: agora ninguém perde de vista de que se trata de uma farsa. Sabem disso tantos os juízes do Supremo que se colocam como reféns dos ritos quanto o colunista de jornal para quem a condenação faz justiça ainda que o Lula não seja culpado dos crimes que a motivaram. Sabe disso até mesmo o nerd boçal que repete eufórico “Lula tá preso, babaca!” e comemora a prisão como o fanático torcedor comemora um gol de mão.
Chega a ser injusta a acusação de hipocrisia feita aos protagonistas dessa farsa. Porque eles não prestam tal respeito à virtude. Tudo está à vista, porque precisa ser à vista: só assim serve como aviso. O que demorou, talvez, a ficar claro é que o objetivo, como já se viu, não foi apenas impedir o que aparentemente era inevitável: a reeleição do ex-metalúrgico. Mas impedir a possibilidade de eleição de um metalúrgico. Não apenas destruir o legado do PT, ou da Esquerda, ou do Getulismo, mas destruir também o legado da Revolução Francesa.
E nós, da periferia do capitalismo, que tínhamos várias razões para duvidar da pertinência do termo Civilização Ocidental, vemos a Democracia, que mal tinha posto os pés aqui, voltar para o navio e partir.
*Rogério de Campos é editor, tradutor e autor dos livros Revanchismo, Dicionário do Vinho (Prêmio Jabuti) e Imageria (Prêmio HQ Mix). Seu livro mais recente, Super-Homem e o Romantismo de Aço (Ugra Press, 2018) fala da relação do gênero super-heróis com o fascismo
O caso Calas é uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda do processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), podemos dizer ser inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente
O magistrado David Beaudrigue estava convicto: o jovem Marc-Antoine Calas fora assassinado pela própria família. O pai, a mãe e um dos irmãos, e também a empregada Jeanne Viguière e um jovem amigo da família, Gaubert Lavaysse: todos que estavam na casa naquela noite do dia 13 de outubro de 1761 diziam que ao descer da sala de jantar, que ficava no primeiro andar, para o térreo, encontraram o corpo de Marc-Antoine no chão. Falou-se de um desconhecido misterioso que fugira, sem ser identificado. Falou-se de uma punhalada. Mas o médico retirou a gravata de Marc-Antoine e ali estava a marca no pescoço: o rapaz fora enforcado ou estrangulado.
Na cidade de Toulouse, no sudoeste da França, Beaudrigue era mais que um magistrado comum: era um capitoul, ao mesmo tempo investigador, promotor e juiz. Usando sua autoridade, naquela mesma noite mandou para a prisão todos que estavam na casa, inclusive o cadáver.
No dia 15, a verdade veio à tona: Marc-Antoine se suicidara. Seu irmão, Pierre Calas, e Gaubert Lavaysse o encontraram enforcado. Desesperados, chamaram o pai, Jean Calas. Os três desceram o corpo para o chão. A mãe, Anne-Rose, ficou assustada com os gritos e pediu a Jeanne que fosse ver o que acontecera. Só depois Anne-Rose foi até lá. Em meio ao desespero, Jean Calas ordenou a todos que não contassem a ninguém que Marc-Antoine se suicidara. Temia o castigo que era tradicionalmente imposto aos suicidas: seu corpo era amarrado nu a uma grade (a claie d’infamie), arrastado pelas ruas da cidade, apedrejado, até ser jogado no depósito de lixo da cidade.
Mas, apesar dessa confissão, o capitoul Beaudrigue continuava convicto: a família, com a ajuda de Jeanne e de Lavaysse, assassinara Marc-Antoine. Ordenou que todos continuassem presos. Outro capitoul, Lisle Bribes, aconselhou ao colega um pouco de calma e questionou a regularidade daquela detenção. Impaciente, Beaudrigue respondeu:
– Isso é comigo, o que está em causa é a religião (“Je prends tout sur moi. C’est ici la cause de la religion”).
Beaudrigue era católico. A família Calas era protestante.
O capitoul aparentemente acreditava nos boatos que começaram a correr pela cidade segundo os quais Marc-Antoine fora assassinado pela família porque desejava se converter ao catolicismo.
O quanto havia de fanatismo religioso em Beaudrigue é difícil de determinar. Durante alguns séculos, ele foi visto por historiadores como um magistrado rígido, cruel e intolerante. Voltaire o considerava tudo isso e também um patife, mas não tinha provas para esta última acusação. Em 1927, Anatole Feugère, professor da Faculdade de Letras de Toulouse, pesquisando nos arquivos da Corte de Justiça da cidade, descobriu documentos de um antigo processo que revelaram o quanto a intuição do filósofo estava correta: os velhos papéis demonstraram que Beaudrigue pouca coisa fazia que não motivada por subornos ou interesses pessoais. Recebia dinheiro de donos de salões de jogos e prostíbulos para fazer vista grossa. Tomava para si cargas de vinho apreendidas de contrabandistas e, santarrão, até promovia orgias em sua casa de campo. Em uma ocasião, usou sua autoridade para punir duramente o ex-amante de sua amante.
Mas, mesmo sem as descobertas do professor Feugère, seria fácil suspeitar das motivações de Beaudrigue para ser tão cruel com os Calas. O poderoso cargo de capitoul era uma conquista que se fazia no campo das relações políticas. O mais poderoso ministro da França naquele momento era o conde de Saint-Florentin, hostil aos protestantes. Beaudrigue trocava correspondência com Saint-Florentin. Além disso, a elite de Toulouse era totalmente católica e o poder judiciário em boa parte dominado pelos Penitentes Brancos (uma irmandade católica). Matadores de protestantes costumavam ser celebrados como heróis. Ser intolerante com hereges era ótimo para a carreira de um capitoul.
Em Toulouse, que fora uma das capitais da heresia cátara no século XII e depois um centro importante do protestantismo na França, o catolicismo teve que se impor a ferro e fogo. Contra os cátaros foram necessárias três cruzadas. Foi em Toulouse que são Domingos criou a Inquisição. E em 1562 aconteceu um grande massacre de protestantes, no qual foram mortas entre 3.000 a 5.000 mil pessoas. Na época, todos os protestantes sobreviventes foram expulsos da cidade. O aniversário do massacre, comemorado no dia 17 de maio, foi uma das principais festividades da cidade até o século XIX. Nesse dia, como retribuição à luta da cidade contra o protestantismo, o papa concedia indulgências a quem fosse rezar na catedral ou na igreja de Saint-Sernin, na qual se encontra uma peça de madeira entalhada que mostra um porco no púlpito com a legenda: “Calvino, o porco, pregando” (“Calvin le porc, prêchant”).
A Inquisição de Goya
Em 1761, a população de Toulouse era formada por 50 mil católicos e 200 protestantes. Que conviviam mais ou menos pacificamente. O comerciante Jean Calas tinha negócios com católicos, os Calas tinham amigos católicos e a própria Jeanne, empregada da família há mais de 20 anos, era uma católica fervorosa. Mas haviam aqueles católicos mais que fervorosos, febris. Corria pela região a história de que os protestantes haviam se reunido em um sínodo, na cidade de Nimes, no qual decidiu-se que os pais e mães eram obrigados a matar seus filhos se esses tentassem mudar de religião. E os boatos diziam que Lavaysse fora enviado à casa dos Calas para ajuda-los a executar o filho.
Por mais absurdo que isso pareça, foi justamente essa história delirante de uma conspiração protestante para matar Marc-Antoine a base da argumentação da acusação:
“Calvino diz que todos os filhos que violem a autoridade paterna, quer através do desprezo, quer da rebelião, são monstros e não homens. E que, portanto, Nosso Senhor ordena que sejam condenados à morte todos os que desobedeçam a pai e mãe. Calvino é de opinião que o filho rebelde e desobediente seja morto”. Calvino, segundo a acusação contra os Calas, teria se baseado em Deuterônimo 21:18: “Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e não os ouve mesmo quando o corrigem, então, seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade e à porta do seu lugar, e dirão aos anciãos da cidade: ‘este nosso filho é rebelde e indócil, não dá ouvidos à nossa voz, é um devasso e beberrão’. Então, todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra”.
Os outros protestantes, de Toulouse e da região, ficaram escandalizados com tal acusação. Denunciaram que o suposto sínodo em Nimes nunca acontecera e que o documento em que Calvino exortara o assassinato de filhos rebeldes era falso. Mas Beaudrigue não lhes deu atenção. Ele tinha outra preocupação: se não havia qualquer prova de que os Calais haviam matado o filho era preciso ao menos provar que havia um motivo para que eles o tivessem feito, provar que Marc-Antoine de fato pretendia se converter ao catolicismo. E o capitoul não tinha nem essas provas. Tinha boatos e tinha sua convicção.
Beaudrigue decidiu então lançar uma “monitória”, uma espécie de chamamento para que pessoas que soubessem de algo sobre o caso aparecessem para depor. Pela monitória, se alguém soubesse algo e não se manifestasse estaria automaticamente excomungado. Em geral, as monitórias funcionavam: com medo de serem condenadas ao inferno, as pessoas que tinham alguma informação corriam para depor. Também em geral, as monitórias não costumavam especificar se queriam depoimentos a favor ou contra os réus. Não era o caso dessa emitida por Beaudrigue, claramente direcionada: queria ouvir quem soubesse algo da conversão de Marc-Antoine, das ameaças que os pais faziam a ele, de uma reunião em que se deliberou sua morte, daquela noite do dia 13 na qual “esta execrável deliberação foi executada, fazendo ajoelhar Marc-Antoine, o qual, pela surpresa ou pela força foi estrangulado ou enforcado” e, por fim, “todos os que saibam quem são os autores, cúmplices, implicados, aderentes deste crime, que é dos mais detestáveis”.
E aí apareceu de tudo, gente que viu Marc-Antoine em igrejas, rezando, e até uma moça que se dizia ex-protestante e que garantiu que o rapaz não só se convertera ao catolicismo, mas também a convertera (depois ficou claro que a história era fantasia da garota, que sempre havia sido católica).
Um exemplo de depoimento:
“Massaleng, viúva, declarou que sua filha lhe contou que o senhor Pagès havia contado à ela que M. Soulié havia contado a ele que a senhorita Guichardet contara a ele que a senhorita Journu havia dito algo a ela que a fez concluir que o padre Lerraut, um jesuíta, tinha sido o confessor de Marc-Antoine Calas”. O padre Lerraut foi convocado para depor e demonstrou que a história não era verdadeira.
Portanto, não havia provas e os testemunhos eram bem frágeis. Mas Beaudrigue tinha convicção e isso ele podia provar: ordenou que Marc-Antoine tivesse um pomposo enterro como mártir católico. Juntou-se uma multidão, vieram delegações de todas as ordens religiosas e todas as confrarias de penitentes. Ou seja, a hipótese de que Marc-Antoine tivesse se suicidado havia sido completamente descartada.
Condenados à morte na primeira instância, os Calas recorreram à segunda instância, que era a Corte de Justiça de Toulouse. Mas ali também não havia esperança: até porque diversos dos juízes eram da irmandade dos Penitentes Brancos. Um dos juízes chegou a dizer às duas filhas de Calais (que não estavam na casa no dia 13 de outubro, portanto não foram implicadas no caso): “Não tendes outro pai agora, senão Deus”.
Ainda assim, os juízes vacilavam: também tinham a convicção da culpa, mas viam que ela não estava demonstrada. Não havia provas. Então alguém teve a ideia de julgar e condenar Jean Calas separadamente. Acreditavam que ele, um pacato comerciante de 64 anos, não aguentaria as torturas que precediam a execução, muito menos encarar o cadafalso: iria confessar e entregar seus cúmplices.
Às quatro horas da manhã do dia 10 de março de 1762, depois de passar a noite na infernet (masmorra reservada aos condenados à morte) foi levado à câmara de torturas. Dois padres ainda tentaram convencê-lo a converter-se ao catolicismo, para assim salvar sua alma já que a vida estava perdida. Mas ele se recusou.
Beaudrigue o esperava na câmara e anunciou que aquele seria o último interrogatório. Calas foi torturado por horas, mas resistiu a todas as tentativas do capitoul de arrancar dele uma confissão. Por fim, foi levado para a praça de Saint-Georges, que já estava lotada pela multidão. O cadafalso estava montado. Jean Calas foi condenado a ser morto na roda, uma das mais cruéis formas de execução: a vítima é colocada sobre uma roda, seus ossos são quebrados e ela fica ali, às vezes sendo comida viva pelos corvos e aves de rapina, até que morra de dor ou que a autoridade tenha a misericórdia de dar o golpe final. Beaudrigue fez mais uma tentativa, pareceu vacilar em sua convicção e admitir que talvez outra pessoa tivesse assassinado Marc-Antoine:
– Calas, embora inocente, sabe talvez quais foram os autores do crime cometido contra a pessoa de Marc-Antoine?
– Não sei.
Calas ficou duas horas na agonizando naquela roda, até que o carrasco o estrangulou. Seu corpo então foi lançado a uma fogueira.
Conta-se que enquanto ele agonizava um padre chamado Bourges fez uma última tentativa de arrancar sua confissão. E o Calas respondeu irritado:
– Padre?! O quê?! Também acredita que se possa matar um filho?!
Talvez um tanto desnorteados com a inesperada firmeza de Jean Calas, os juízes liberaram os outros acusados dias depois. Pierre foi condenado a um simulacro de exílio perpétuo: foi levado para fora de um dos portões da cidade e então conduzido novamente para dentro da cidade, para o convento dos dominicanos onde ficou sob vigilância até o dia 4 de julho, quando fugiu.
Voltaire vivia do outro lado da França, em Ferney, na fronteira com a Suíça. Quando ouviu a história do protestante que matou o filho, chegou a fazer piada a respeito. O filósofo aceitava como fato que Jean Calas era um fanático que matou o filho porque este queria se tornar católico. Voltaire tinha tanto desprezo pela intolerância católica quanto pela protestante.
Mas um comerciante de Marseille, que vinha de Toulouse e estava de passagem por Ferney, contou a Voltaire a outra versão da história. O filósofo ainda assim, resistiu a acreditar que os juízes pudessem ter errado. Escreveu a um amigo que o crime de Calas lhe parecia pouco verossímil, “mas é menos verossímil ainda que os juízes, sem qualquer interesse, tenham feito perecer um inocente no suplício da roda”.
Voltaire começou uma espécie de investigação para chegar à verdade. Mandou cartas para amigos que podiam saber mais do caso. “Quero saber de que lado nesse caso está o horror do fanatismo”, diz em uma das cartas. Por fim, se convenceu da inocência de Calas. E iniciou a épica campanha para que a verdade viesse a público. Seu célebre Tratado sobre a Tolerância (Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas – 1763) é parte dessa campanha que alcançou a vitória no dia 9 de março de 1765, quando o Conselho Real, em Paris, reabilitou Jean Calas e sua família, que foi indenizada pelo rei. Exatamente três anos depois da sentença que condenou Calas à morte.
O ministro Saint-Florentin tratou de se desvincular discretamente do caso. Usou outra falha de Beaudrigue, em outro caso, como desculpa para destituí-lo. Beaudrigue enlouqueceu. Tentou suicídio duas vezes. Na segunda tentativa foi bem-sucedido.
Voltaire tinha 70 anos quando ouviu falar de Calas pela primeira vez. Já havia feito sua fama como filósofo. Mas o caso daquele comerciante de Toulouse revolucionou sua biografia: ele se tornou um herói, um campeão na defesa dos injustiçados. E se tantos bustos dele enfeitam bibliotecas até hoje é menos por causa de Cândido que por Calas. Nove de março de 1765 passou a ser o jour de gloire do iluminismo francês.
Para diversos historiadores, o caso Calas marca o início da campanha contra a pena de morte e contra a tortura. O caso virou o grande monumento ao princípio jurídico da Presunção da Inocência. Tal princípio já estava presente no Corpo do Direito Civil, de Justiniano: “Ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat” (“Àquele que disse e não ao que nega incumbe à prova”), mas foi mais ou menos esquecido durante a Idade Média, que talvez tenha começado a acabar quando o cardeal e jurista francês Jean Lemoine escreveu “item quilbet presumitur innocens nisi probetur nocens” (“uma pessoa é considerada inocente até ser provada culpada”).
É também em 1765, ano da reabilitação de Calas, que William Blackstone publica Commentaries on the Laws of England com seu famoso ratio: “é melhor que dez culpados escapem à condenação que um inocente sofra”. Podemos pensar que isso foi coincidência, resultado da Inglaterra estar mais adiantada em seu caminho rumo à democracia. Mas é certo que é Calas quem está na memória dos autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) quando eles escrevem o artigo 9: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
É claro que os Judiciários do mundo inteiro seguiram cometendo as injustiças que lhes são próprias. Mas a passou a existir aquela monumental referência do que é certo.
O caso Calas é, portanto, uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado sistema democrático ocidental. Assim, quando o Brasil se coloca como parte da vanguarda desse processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de expressão…), poderia se dizer que era quase inevitável ter seu caso Calas, que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente. Como se o caso precisasse ser refeito para que todas as consequências que teve possam ser revertidas. Então a tragédia de Toulouse volta a acontecer em Curitiba, na forma de farsa.
Como em Toulouse, o capitoul Sergio Moro não tem provas que sustentem a condenação de Lula. Moro, como Beaudrigue no passado, sequer consegue provar que há um crime. Existem os depoimentos, alguns delirantes, alguns maliciosos e interessados, alguns depoimentos, em Toulouse, arrancados à custa de ameaças de excomunhão, vários em Curitiba arrancados às custas de torturas (e não é tortura manter um cidadão preso por meses até que ele confesse a suposta culpa de outro cidadão?).
Mas há a diferença fundamental para o primeiro caso Calas: agora ninguém perde de vista de que se trata de uma farsa. Sabem disso tantos os juízes do Supremo que se colocam como reféns dos ritos quanto o colunista de jornal para quem a condenação faz justiça ainda que o Lula não seja culpado dos crimes que a motivaram. Sabe disso até mesmo o nerd boçal que repete eufórico “Lula tá preso, babaca!” e comemora a prisão como o fanático torcedor comemora um gol de mão.
Chega a ser injusta a acusação de hipocrisia feita aos protagonistas dessa farsa. Porque eles não prestam tal respeito à virtude. Tudo está à vista, porque precisa ser à vista: só assim serve como aviso. O que demorou, talvez, a ficar claro é que o objetivo, como já se viu, não foi apenas impedir o que aparentemente era inevitável: a reeleição do ex-metalúrgico. Mas impedir a possibilidade de eleição de um metalúrgico. Não apenas destruir o legado do PT, ou da Esquerda, ou do Getulismo, mas destruir também o legado da Revolução Francesa.
E nós, da periferia do capitalismo, que tínhamos várias razões para duvidar da pertinência do termo Civilização Ocidental, vemos a Democracia, que mal tinha posto os pés aqui, voltar para o navio e partir.
*Rogério de Campos é editor, tradutor e autor dos livros Revanchismo, Dicionário do Vinho (Prêmio Jabuti) e Imageria (Prêmio HQ Mix). Seu livro mais recente, Super-Homem e o Romantismo de Aço (Ugra Press, 2018) fala da relação do gênero super-heróis com o fascismo
Estudantes de colégios militares custam três vezes mais ao País
Jornalista: Leticia
Cada aluno de colégio militar custa ao País três vezes mais do que quem estuda em escola pública regular. São R$ 19 mil por estudante, por ano, gastos pelo Exército nas 13 escolas existentes – que têm piscinas, laboratórios de robótica e professores com salários que passam dos R$ 10 mil. O plano de governo do candidato à Presidência Jair Bolsonaro(PSL) fala que, em dois anos, haveria “um colégio militar em todas as capitais de Estado”. A ampliação desse modelo é a ideia mais repetida pelo presidenciável na área de educação.
O setor público investe, em média, R$ 6 mil por estudante do ensino básico anualmente. Se todos os alunos de 11 a 17 anos estivessem matriculados em instituições militares, seriam necessários R$ 320 bilhões por ano, o triplo do orçamento do Ministério da Educação (MEC).
Bolsonaro, que é capitão da reserva, tem elogiado os colégios pelo ensino de alto nível, com disciplina rígida. Ao Estado, afirmou que eles seriam interessantes em áreas violentas. “Existe eficiência porque existe disciplina. Hoje, qual o professor que vai tomar um celular de um aluno em aula?”
O desempenho dos alunos das escolas do Exército em avaliações nacionais é, de fato, superior ao restante das escolas. No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a média é maior até do que a dos alunos de escolas particulares. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador de qualidade no País, dos colégios militares é 6,5 (do 6º ao 9º ano do fundamental). O das escolas estaduais, 4,1.
No entanto, a renda desses estudantes é classificada como “muito alta” pelo MEC, um grupo em que se inserem apenas alunos de 3% das escolas brasileiras. A classe socioeconômica é considerada por educadores como um dos fatores mais importantes para a aprendizagem, pelas influências que o aluno recebe e pelas condições de vida.
A maioria dos estudantes dos colégios mantidos pelo Exército é filho de militar. O restante precisa fazer provas em que a concorrência chega a 270 por vaga. Na Fuvest, o curso mais disputado, Medicina, teve 135 candidatos por vaga em 2017. Em alguns lugares, como Brasília, há cursinhos preparatórios para o exame do colégio militar.
A diretora executiva do movimento Todos Pela Educação, Priscila Cruz, afirma que o modelo tem custo alto e é para poucos, principalmente porque faz seleção de alunos. Atualmente, todas as instituições do Exército juntas atendem 13.280 alunos do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do médio. O Brasil tem 17 milhões de estudantes nessa faixa etária. “Não se pode perpetuar a ideia na educação de que alguns têm privilégios. O que precisa é uma solução para todos e principalmente para os mais pobres.”
Apesar de haver problemas de aprendizagem em todo o País, as crianças de classe baixa são as que têm resultados piores. Só 21% dos alunos mais pobres estão em níveis adequados de Português aos 11 anos. O índice sobe para 56,4% entre os mais ricos.
Autonomia pedagógica nos colégios militares
As escolas militares não têm a função de formar quadros para o Exército – só uma minoria segue a carreira e quase todos vão para boas universidades. As instituições – mantidas com verbas do Ministério da Defesa – têm autonomia para montar o currículo e a estrutura pedagógica. “A maioria dos nossos professores tem pós-graduação. Temos psicólogos, infraestrutura. Nossa meta é preparar o aluno para a universidade e para a vida”, diz o diretor de educação preparatória e assistencial do Sistema Colégio Militar do Brasil, general Flávio Marcus Lancia. Ele não quis comentar a ideia de Bolsonaro de expandir o modelo.
Para David Saad, presidente do Instituto Natura, que apoia iniciativas na área de educação, o colégio militar é uma escola de referência e “não foi feito para que todas sejam iguais a ele”. “Para virar política pública é preciso funcionar pra qualquer aluno e usar professores da própria rede, por exemplo.”
O custo aproximado para se ter um colégio militar por capital – ou seja, mais 16 escolas pelo País, com cerca de mil alunos cada – seria de R$ 300 milhões. Isso sem contar o valor que seria gasto para construção das estruturas. Bolsonaro tem dito que pretende fazer “o maior colégio militar do Brasil no Campo de Marte, em São Paulo”. A cidade é uma das capitais que não tem uma escola do Exército e há anos se estuda essa possibilidade na instituição.
O montante para a ampliação da rede militar representa mais do que foi usado pelo MEC em 2017 para formação de professores no País (R$ 200 milhões). “É preciso ver o que é prioritário para esse volume grande de recursos. Não se pode apostar com dinheiro público e, sim, olhar para aquilo que já deu resultado”, diz Priscila.
Como exemplo, educadores defendem que o Brasil adote o modelo de tempo integral para o ensino médio, em que os adolescentes ficam até nove horas na escola. O Estado de Pernambuco, que já tem 50% das escolas integrais, conseguiu atingir o Ideb mais alto do País. O custo por aluno/ano é de cerca de R$ 8 mil. “Todas as pesquisas mostram melhoria relevante de aprendizagem, até em grupos vulneráveis, diminuição da evasão e uma conexão maior do jovem com a escola”, diz Saad.
Colégio Militar no Rio tem disciplina e tradição como proposta pedagógica
Considerado um dos mais tradicionais do Rio, o Colégio Militar aposta na disciplina e na hierarquia e rejeita linhas pedagógicas alternativas. Tem um público grande e fiel. A cada ano, milhares de jovens encaram uma dura competição para garantir uma vaga na escola – que está entre as 100 mais bem colocadas no Enem no Estado. O mais antigo colégio militar do País tem uma mensalidade simbólica de cerca de R$ 260, que depende das condições socioeconômicas do aluno.
Este ano, as inscrições para o concurso já estão abertas. Até agora, 2.770 alunos se inscreveram para disputar 45 vagas no 6.º ano e 15 no 1.º do ensino médio. “Desde pequena minha filha falava muito em Nasa, em tecnologia, e era apaixonada pelo colégio”, conta a analista de sistemas Maria da Penha Ramos, de 47 anos, mãe da Rafaela, de 19. “Tentamos no 6º ano; ela fez a prova no Maracanã lotado, e não passou. No ensino médio, dentre 3.700 jovens, passou numa das primeiras colocações.”
A infraestrutura é grandiosa. São 20 mil metros quadrados de terreno, no coração da Tijuca, um dos mais movimentados bairros da zona norte do Rio. Tem piscina, ginásio esportivo, campo de futebol, cavalos para a prática de hipismo. Os prédios mais modernos, onde ficam a maior parte das classes, dividem espaço com edificações centenárias, que estão de pé desde a inauguração, em 1889.
São hoje 1.627 alunos, meninos e meninas. Além do currículo tradicional, têm também aulas eletivas, como robótica, informática, teatro e dança. Mas a tradição fala alto. Os jovens usam um elaborado uniforme que lembra uma farda militar e remonta, praticamente, à fundação do colégio. As meninas podem usar saia, mas desde que ela fique abaixo do joelho, e os cabelos precisam estar presos. O uniforme deve estar sempre impecável, sob pena de perda de pontos disciplinares que podem levar à expulsão.
Namorar é estritamente proibido dentro do colégio e também na porta. As aulas começam pontualmente às 7h, mas os alunos devem chegar às 6h40. Eles batem continência para professores. “A nossa proposta prega o respeito aos professores, aos mais velhos, são marcas da cultura militar”, diz o subcomandante do colégio, coronel André Pires Do Val. “Rafaela uma vez esqueceu a estrelinha do boné e teve que voltar para casa para pegar e poder entrar”, lembra a mãe. “Mas acho a disciplina adequada ao bom desenvolvimento dos alunos.”