Cozinheiros de Cora melhora qualidade de vida de crianças com deficiência

Quando a escritora goiana Cora Coralina criava sua poesia e preparava suas receitas no fogão a lenha de sua casa, no interior de Goiás, certamente não imaginou que seus livros infantis e experimentos na cozinha se tornariam uma fórmula pedagógica que colaboraria de maneira eficiente no desenvolvimento psicomotor de crianças de 3 anos com algum tipo de deficiência.
Decerto, ela também não pensou que suas receitas, como a do Biscoito Zé Pereira ou a da cocada, seriam feitas por crianças de 3 anos, numa escola pública do Distrito Federal, e os elementos folclóricos de seu cotidiano atravessariam o tempo e extrapolariam os versos de sua poesia para se materializarem em ingredientes didáticos de um projeto de educação inclusiva que acontece há 4 anos no Centro de Ensino Especial 01 (CEE 01), de Brazlândia – o Cenebraz
O Projeto Cozinheiros de Cora é tudo isso e um pouco mais. Imaginado por uma professora apaixonada por Coralina, o projeto usa suas obras infantis e as receitas culinárias na última etapa do Ensino Especial – uma modalidade denominada de Educação Precoce  para levar conhecimento e desenvolver habilidades nessas crianças.
A atividade é executada durante o ano letivo e culmina com uma visita presencial à Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás. Este ano, a visita ocorreu nessa quinta-feira (27) e contou com a participação de 120 pessoas: 41 estudantes, 20 professoras e 59 pessoas, dentre as quais os(as) acompanhantes das crianças, a diretora do Sinpro-DF, Luciana Custódio, e uma equipe de jornalistas da entidade sindical.
A diretoria colegiada do sindicato entendeu que havia chegado a hora de ver de perto um projeto premiado e que tem transformado para melhor a realidade de muitas crianças e de suas famílias em Brazlândia. “Acompanhar o Cenebraz em um dos momentos desse projeto da Educação Precoce é a simbolização do quanto o Sinpro-DF é um sindicato que valoriza e reconhece ações pedagógicas como também o espaço de luta por uma educação de qualidade”, afirma Luciana.
No entendimento da diretora, “a dimensão pedagógica, cultural e social do que podemos compartilhar, hoje, com essa comunidade escolar do Cenebraz, nos remete ao que Paulo Freire nos deixou como um de seus legados: a esperança como um ato revolucionário”.
Luciana diz que há muito tempo o Sinpro-DF deixou de ser um sindicato que constrói uma pauta focada apenas nas questões corporativistas. “Somos um sindicato de professores, portanto, nada mais natural do que reconhecermos esses espaços pedagógicos como espaços de construção de uma sociedade melhor, mais justa, mais igualitária”.
O que é o Cozinheiros de Cora?
“E essa é a proposta pedagógica do Projeto Cozinheiros de Cora: melhorar a qualidade de vida de crianças com deficiência e suas famílias de baixa renda. O projeto consiste em ler os livros infantis e o de receitas da escritora Cora Coralina. Com as receitas, a gente ensina matemática, linguagem, entre outras coisas, de uma forma mais dinâmica. A gente faz as receitas e, numa das fases do projeto, as crianças levam o livro para casa e fazem uma delas com a família”, explica a Danielle Passos, professora de Atividades do Cenebraz.

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Confeiteira Rita e seus filhos

A professora assegura que a atividade materializa uma parceria muito grande e importante entre a escola e a família das crianças com deficiência. “É superinteressante porque é um projeto que os pais abraçam”, diz a professora. Rita de Cássia Ferreira da Silva, mãe de Flávio José Corrêa da Silva, que participa do projeto, é um exemplo dessa parceria. Na fila de espera para adentrar o museu, ela conta que estava ali se preparando emocionalmente para ver de perto tudo o que viu virtualmente na escola.
“Este projeto é maravilhoso e me emociona muito por eu ser confeiteira, por ter essa história linda da Cora. Estou me preparando porque não sei como vou reagir ao entrar, porque é uma história que se a gente viver 20, 30, 40 anos, vai poder contar que visitou o museu”.
Ela é mãe também de José Elvis Corrêa da Silva, filho mais velho que participou das primeiras edições da atividade. “Mas quando ele participou, ainda estava no começo e não teve a oportunidade de visitar a Cidade de Goiás. Aproveitamos para trazê-lo também. Sou confeiteira, acho que eles veem nisso uma alegria. Eles também querem fazer, ajudar, aprender na cozinha. Para mim, é uma coisa linda, uma história maravilhosa. Acho que todo mundo tinha de passar por esta emoção que estou passando”.
Prêmio, reconhecimento e metodologia
Este ano, o Cozinheiros de Cora participou da Feira de Ciências de Brazlândia e foi classificado para participar da Feira de Ciências do Distrito Federal. Em 2015, ele foi apresentado no Circuito de Educação, da Universidade Católica de Brasília (UCB), no qual as crianças fizeram as receitas e as explicaram ao público.
O método tem sido tão bem-sucedido que é reconhecido e comemorado pelos docentes e, sobretudo, pelos pais e mães. “A prova disso é que, no início do ano letivo, muitas crianças apresentam sérias dificuldades psicomotoras, como, por exemplo, não conversam. Após o projeto, elas conseguem explicar uma receita em público”, diz Danielle.
Como quase tudo na execução do magistério, o Cozinheiros de Cora exige das professoras um trabalho árduo, mas, ao mesmo tempo, é considerado gratificante. Durante o ano letivo, elas seguem um roteiro de atividades que envolve rodas de leituras de livros de Cora Coralina, como o “A menina, o cofrinho e a vovó”. Em maio deste ano, trabalharam com a obra “As cocadas”. É quando as crianças fazem cocadas e as levam de presente do Dia das Mães para casa.
Entre as obras, há um livro que não é de Cora, mas traz uma personagem real da vida da escritora goiana e um tema importante que ajuda as professoras a cumprirem o currículo escolar com transversalidade. É a obra “O que teria na trouxa de Maria?”. A autora Diane Valdez se inspirou em Maria Grampinho, das histórias da Cora Coralina, para escrevê-lo.
A partir da figura de Maria Grampinho as professoras trabalham o tema étnico-racial e o racismo, as nacionalidades e outros assuntos. No museu, as crianças vibraram ao verem a trouxa da negra andarilha que descendia de escravos e se tornara amiga de Cora. Todos os livros utilizados apresentam transversalidade e permitem aos docentes executarem atividades pedagógicas que desenvolvem habilidades.
Cora Coralina é o pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Ela era filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador nomeado por D. Pedro II, e de dona Jacyntha Luiza do Couto Brandão. E contou com o apoio de um dos maiores poetas brasileiros na divulgação de sua obra: Carlos Drummond de Andrade.
As crianças sabem de tudo isso. Dentro da casa, Marlene Velasco, diretora do museu, guiava a visita e tudo o que perguntava as crianças sabiam responder. O projeto proporciona aos professores e às professoras atuarem de forma dinâmica para contextualizar o(a) estudante. Tanto é que, na visita presencial, as crianças sabiam onde estavam e o que estavam fazendo na Cidade de Goiás.
“Eles conseguem dizer até como é a casa da escritora. Sabem que Cora Coralina era uma escritora que morava na capital e voltou para o interior de Goiás. Passou a ser doceira e a fazer poesia. Escreveu vários livros. E, hoje, a casa dela é um museu”, garante Danielle.
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Wanda Melo, idealizadora do projeto

Uma história e muitas paixões
O Cozinheiros de Cora surgiu da paixão de Wanda Melo, professora de Atividades no Cenebraz, por Cora Coralina e pelo magistério. Ela começou a lecionar em 1990 e desde que assumiu a Educação Precoce passou a elucubrar sobre como poderia fazer a diferença, envolvendo os pais, as mães e a comunidade escolar na construção desses sujeitos especiais.
“Aí, um dia, participando da Feira de Ciências, vi o estande de Cora Coralina. E como cresci no Estado de Goiás ouvindo histórias sobre ela, e já havia visitado a Cidade de Goiás, decidi elaborar um projeto que a envolvesse também”, conta.
Pesquisou e concluiu que poderia começar com a história das cocadas. “Uma história apaixonante que calhava com a idade das crianças. Montamos uma minibiblioteca, adquirimos um tacho de cobre, erguemos um fogão a lenha e, por fim, fomos construindo, juntamente com as crianças e suas famílias, as condições para execução do projeto”, lembra.
Com o Cozinheiros de Cora, Wanda estabeleceu um método que utiliza a roda de leitura. As histórias são contadas por capítulos. “Cora é uma personalidade incrível que sobreviveu a todas as dificuldades. Foi uma mulher à frente do seu tempo e, apesar de tudo, construiu um acervo cultural muito rico”, comenta a professora.
Se Cora se inspirou na culinária e no seu dia a dia para fazer poesia, Wanda se apoiou nas receitas de Coralina para fazer pedagogia e transformar a realidade em sua escola. Não é à toa que Cora Coralina é reconhecida como uma mulher à frente de seu tempo. “Aprendi a cozinhar e, no projeto, trabalhamos a língua portuguesa. A gente escreve as receitas no chão e vai mostrando o livro. Trabalhamos medidas, sabores, cheiros, geografia – mostramos onde é a cidade e fazemos várias visitas virtuais à casa dela com as crianças e os pais –, antes de virmos à visita presencial”, explica.
Trabalham o nome do Rio Vermelho, que passa do lado da casa de Cora, e todos os conteúdos possíveis. “Até hortinhas e plantas a gente trabalha porque falamos do jardim da autora e conversamos sobre os tipos de plantas, frutas, que ela usava nas receitas e onde ela as colhia”.
Wanda diz que muitos pais e mães choram quando veem o fogão a lenha e o tacho. “Lembram do passado e da infância. Da avó. Esse projeto é também um resgate da cultura popular”. Ela se aposentou em julho deste ano, mas está presente sempre que é convocada pela escola para participar de alguma atividade relacionada ao projeto.
Recursos financeiros
Embora seja desenvolvido numa escola pública, o projeto não recebe nenhum investimento financeiro do Governo do Distrito Federal (GDF). Há 4 anos as professoras do Cenebraz realizam atividades e eventos para arrecadar dinheiro e custear o projeto e a viagem.
“Por isso o apoio dos pais é muito importante porque estamos sempre precisando. Eles contribuem com R$ 5,00 por mês durante o ano para a gente conseguir arcar com as despesas das receitas. Temos de comprar os ingredientes e sempre que dá a gente faz bazar, vende bolos e tortas nas feiras, vaquinhas, festas e eventos para conseguir pagar a viagem”, conta Danielle.
Ela diz que o dinheiro tem de contemplar também as crianças cujos pais não têm condições financeiras de participar. Todo ano, a escola precisa de três ônibus e recursos para alimentação durante o dia que passam viajando.
“Acredito que se a Secretaria de Estado da Educação do DF viesse acompanhar este projeto, teria interesse em investir recursos financeiros nele e que a gente pudesse continuar. Muitas vezes ficamos desanimadas porque todo ano a gente tem de começar do zero e realizar atividades para arrecadar dinheiro, mas o que nos estimula a continuar são os resultados positivos e o progresso visíveis nas crianças”, finaliza a Danielle.
Fotos: Carla Lisboa